O Pintor de Almas - Ildefonso Falcones

Atenção: Spoiler

Emma. Como eu invejo Emma. 

A Catedral do Mar e Os Herdeiros da Terra já tinham provocado em mim um efeito surpresa, um gosto tremendo pela leitura e por perceber que muita coisa tem de ser escrita e inventada para percebermos que o dom da palavra não está esgotado.

Ildefonso tem também, para mim, a sorte de vivermos tempos conturbados onde as pessoas são constantemente chamadas a decidir de que lado da barreira querem estar, sendo ou não de forma activa. 

Infelizmente estamos no tempo do tudo ou nada. Tempos que já se viveram noutros tempos e que não serviram para grandes coisas mas com o tempo acabaram por provocar algumas das mudanças esperadas por Emma, em algumas sociedades. Houve quem soubesse lutar e quem quisesse mudar e aprender e essas sociedades evoluíram. Outras houve que retrocederam.

Estou agora na fase da minha vida que ela terá quase com a mesma idade que eu. 

Emma é a minha heroína. Emma foi aquilo que quero e gostaria de ser agora. É forte agerrida, corajosa. Exagera mas vai á luta, não tem medo. Fá-lo por todos, por ela e depois pela filha que leva consigo, até nos piores momentos. 

Emma tem ilusões, sonhos e esperanças e mais tarde defronta-se com uma realidade que engoliu tudo aquilo em que acreditava mas também descobriu outras formas de luta quando fugiu.

É nisso que estou agora, perdida entre o que acredito e a vontade de ir para a rua, ser a primeira da fila, lutar, matar, incendiar pela justiça, pela verdade e pela liberdade e uma realidade que sei que me esmagará e da qual tenho de salvar o Diogo. 

Se ficar calada consinto em deixar-me oprimir e posso destruir a possibilidade de salvar o que será possível salvar do planeado, se falar posso ser ostracizada, perseguida por um algoritmo ou IP qualquer. Se não falar posso contribuir para a não salvação daquela parte do mundo que conheço e onde quero que ele continue a viver indigitalmente.

Alguém me disse que tenho de fazer valer as minhas crenças pela calada porque não adianta nada protestar. As pessoas têm o dom de nem quererem saber que são enganadas. Emma protestava, acreditava que era possível, acreditava que havia injustiça e protestava.

O Mundo engoliu-a e acabou por ser feliz ao tornar-se na burguesa que combatia porque lutou e ia morrendo em vão. Eu sei que o Mundo vai engolir-me e isso deixa-me frustrada e esta sensação de impotência revolve-me constantemente o estômago, até porque não sou capaz de a aceitar, porque eu queria que não fosse exactamente como eles tanto querem, porque não gosto nada do globalismo profundo e radical que querem impor á força do tens de aceitar ou tens de aceitar sem questionar, porque é assim que nós queremos, porque é assim que nós achamos que é melhor para ti e para todos.

O Mundo vai esmagar-me? Obrigar-me a aceitá-lo como ele quer quando eu não quero e não acredito no Mundo assim?

Emma é tudo o que eu queria ser agora. Quero lá saber da história de Barcelona, do fervilhar da arte, da igreja com as suas contradições e dos empresários e burgueses com as suas hipocrisias. Eu quero saber de Emma e deixei-me levar e engolir por ela. 

Por vezes fiquei chocada com as suas atitudes, outras vezes temi pela sua vida mas tive sempre de alma ao seu lado. Eu queria ser Emma, agora. Eu entendo Emma numa critica que ninguém fala porque não é bonito falar de sentimentos nem de empatia por alguém que incentivou á destruição. 

Tem de se sentir como Emma para se saber exactamente como e porque é que ela se move. Nesta altura eu sinto. 

Sem a sua coragem e determinação porque estou presa a esteriotipos e ao medo de prejudicar o meu filho, ficar sem ele e morrer a lutar, anseio mover-me assim e talvez morresse porque a minha raiva e o meu nojo muitas vezes ultrapassam os limites da racionalidade e também eu desejo ver arder.

Não é preciso estar a passar fome é preciso sentir fome e opressão. Emma sentia-o, eu sinto-o. Tenho fome da liberdade e do livre arbítrio. Ela quer dignidade no trabalho, bom salário e comida, eu quero dignidade na vida, liberdade, justiça e verdade. 

Deixo-me envolver e matar por ela. Devoro letras e choro. Tenho páginas de preocupação até á próxima leitura, até ao próximo acontecimento. Tenho horas de indecisão até á invenção duma nova estirpe, dum novo certificado, duma nova restrição. 

Tenho a sede e a raiva de Emma mas estou na sua fase burguesa e tenho medo. Ela foi burguesamente feliz eu não sou nem burguesa nem estou feliz porque vivo irrequieta dentro de contradições no meu sentir. 

Emma acabava sempre por agir. Eu vivo lentamente adormecida atrás dum ecrã numa esperança que mude devido ao medo pelo meu filho. Eu consumo a morfina de Dalmau no despertar do dia a dia e esta droga de relógio não satisfaz a minha fúria e a minha ânsia, não alimenta o meu desespero nem seca as lágrimas que choro sozinha.

Estou á beira do precipício e vejo Emma na prisão á espera da morte. Ela foi salva. Será que me vou salvar ou deixar consumir pela incerteza dos que agora fazem os nossos dias e nos transformam em marionetes?

O Pintor de Almas apareceu numa excelente altura na minha vida. Introspectivou-me o desejo de outra forma e reduziu-me àquilo que nunca serei. Nunca serei Emma e ninguém querer saber a não ser eu, nesta insignificância dos meus dias e na tristeza que me acompanha passo a passo.



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